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Monday, June 26, 2017

meu amor, teu deus

meu amor, teu deus
estou debaixo de sombra e água fresca
num domingo no aterro
caçando o que restou da paz
os meninos pobres, redivivos
chutando uma bola encardida
e namorando o sonho do topo do mundo
eu, que não quero ser morna nem prece
procuro os meus amigos em vão
- o tempo é implacável: somos saudade
e não sobrou uma fotografia sequer
ao longe, vejo os mendigos 
ganhando o sonho da sopa na caixa
a cidade está de folga
e todos queríamos ser paz
chutar bola em tempos de abraços
desprezar a ansiosa solidão
namorar a garota mais bonita do mundo
ou o rapaz também
até que o pai nos gritasse: o almoço
e riríamos com o refrigerante
a presença da mãe, a família
o rádio pronto para o jogo das cinco
aos pés da tarde em Copacabana
com seus bares, amigos e papos
estou debaixo dos meus escombros
mendigando um punhado de paz
o jogo é o das quatro - a rádio, desalinho
e meus amigos são plena saudade 
o amor, ah, o amor, das canções e versos
parecem tão esquecidos
até que alguém sorri e chora:
meu amor, teu Deus - a água leve 
da pia branca levou consigo
os grandes amores da nossa infância
os predicados lúdicos do romance
dos nossos começos 
e não sabemos o tempo que resta
a paz que desarma, a fidalguia: 
o que temos é amor e memória

@pauloandel 

Tuesday, June 20, 2017

chuva

a chuva incessante ganha as ruas da cidade com força. ruas que viram riachos, bueiros que são meras lixeiras e todos aguardamos a nova tragédia, numa velha repetição de erros e indiferenças. a chuva, que alegra alguns corações e faz o pavor em muitos outros, seja numa encosta ou debaixo de uma marquise. ah, chuva, que engana e não traz paz. chuva que desnorteia os outros corações, tão mendigos, e que ajuda a girar a roda da notícia - viva os sucessos populares! agora todas as regiões são uma longa noite, agora as calçadas bebem goles de inundação, agora a televisão mostra uma banda quase jovem cantando um hino dos antigos: "não sou brasileiro, não sou estrangeiro, não sou de nenhum lugar, sou de lugar nenhum". somos de qualquer lugar. a chuva alaga a cidade. talvez não estejamos nem aí para tudo.

@pauloandel


Monday, June 19, 2017

cinismo song

I

Finalmente chegou o dia em que somos todos inúteis. Seja na condição de cracatoas assanhadas da internet, seja pela indiferença cínica que muitos de nós utilizam para lidar com o mundo, seja pela torcida por este liberalismo escroque, a verdade é que somos todos inúteis. O mundo explode em guerras, atentados, cenas violentas, traições da natureza, desencantos mis e continuamos em nossos papéis de cavaleiros da moral internauta. E do alto dos castelos virtuais, assistimos calados ao desgoverno dos pezões e malafaias, à insana escrotidão da república golpista, à farsa nojenta dos veículos de comunicação. Enquanto o mundo gira, o Brasil se espatifa e todos ficamos orgulhosos de nossos murais, dos kkkkkkk e dos mimimi. Achamos o máximo porque somos/supomos ser subcelebridades de porra nenhuma numa superpopulação eletrônica, isso quando não fazemos de tudo para eliminarmos o sub em vão. Kkkkkkk, mimimi, ahahahahahaha e aí está a certidão de nascimento de toda a nossa inutilidade. Este POST é a prova viva de que nos tornamos a sociedade do dia em que somos todos inúteis. O que mais será preciso para virar essa porra toda de cabeça para baixo, sacudir tudo e varrer a sujeira de vez? Não precisamos ser inúteis para sempre, pois. O resumo é de cada um, a tristeza é de todos nós, a conta também. Pôstis e tuítes são supositórios desconfortáveis. Até quando fingiremos que este mundo real não tem o formato desigual, escroto e fadado ao simplório fracasso? Aleluia!

Friday, June 16, 2017

midnight copacabana II

depois de ter visto a miséria e a prosperidade esmolando no mesmo balcão de botequim

e as doces tristes putas aguardando o carro que lhes sirva de sobrevivência

os garotos negros sentados no chão em posição de ataque em frente à porta das Casas da Banha, ignorados por senhoras respeitáveis e marombeiros com esponjas nas mãos

depois de ter visto e ouvido a esquina mais barulhenta do mundo na janela da casa de Marcelo Conde

os garotos fumando maconha e depois jogando football de praia com os operários da grande obra da Avenida Atlântica

e entender que Copacabana não é simples assim

nosso lorde das ruas é um mendigo com seis metros de altura, duzentos quilos e um cheiro indefectível de éter que atravessava três quadras

e que rivalizava com Ramiro, que picava mil papéis na rua Siqueira Campos e, certa vez, acertou um belo soco num reacionário debochado

os quitinetes estão cheios de dor, de luta, mas luxúria quando for o caso raro

generais de pijamas jogam cartas e cheiram pó na varanda de um grande apartamento do Bairro Peixoto

e garotos moderninhos vestidos de preto com camisetas do The Cult, passam apressados com seus copos de bebida alcoólica 

a caminho do Crepúsculo de Cubatão

o jovem poeta Fausto Fawcett cria rapa e poesias no Cervantes, quartel-general da avenida Prado Júnior

e belas garotas passam de carro a caminho do Leme, na Pizzaria Sorrento, perto da casa do ator e lutador Ted Boy Marino

já no outro lado do bairro, no Forte de Copacabana, impera um silêncio austero, enorme, que até finge imprimir um tom sóbrio aos arredores

mas como, se a Galeria Alaska ferve solta com seu interminável carnaval homoerótico? 

eu vi a calma à beira do mar que precede qualquer assassinato por motivo torpe - eu vi os sóis - eu vi três mundos 

todos eles pensativos na calçada do edifício Ritz

amanhã é um outro dia 

Saturday, June 10, 2017

cruzadas de ódio

até quando seremos mortos vivos
em nossas cruzadas de ódio
atravessando o caminho entre o nada
e o nunca
pelo prazer da humilhação alheia?

desfraldando as bandeiras da estupidez
e gritando gol a cada outro ofendido
somos felizes mortos vivos
a vida é nosso uniforme vestido ao avesso

somos estúpidos, arrogantes e bastante ignorantes: somente assim encontramos nosso lugar ao sol

num dia de céu apodrecido
e o fartum acre das ruas abandonadas

até quando nossa pretensão vai nos guiar até o Olimpo dos idiotas?
onde não temos respostas
para nenhuma das nossas perguntas

quando vamos aprender que não passamos de granadas sem pino
efêmeras por natureza
e que ao menos descuido
nos tornamos grandes bifes podres?

ou orgulhosos seres primitivos
da idade da pedra digital?

será que um dia nos livraremos do consumismo pueril e da indiferença oca?


ou seremos eternas marionetes nas mãos da TV, das grandes corporações, da nossa própria desinformação?