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Monday, July 31, 2006

O frio domingo

Ontem não era propriamente o que se chama de um domingo de regatas.
Houve um frio enorme na Guanabara; as ruas eram vazias e, portanto, cheias de silêncio ocasionalmente cortado pelo tilintar das gotas de garoa nas peças metálicas de bueiros, tampões e semelhantes.
O sopetão de inverno deixou os bairros calados, serenos, acolhidos pelo cinza que se fez de celeste.
Segui a minha rotina habitual de vários domingos, vários dias e anos: ir para o Maracanã, o mesmo que está na minha vida tal como um parente querido, que tantos insistem em derrubar. A rotina foi levemente alterada pelo fato de que utilizei o metrô como meio de transporte - normalmente gosto de ver as ruas, os caminhos, mas a falta das gentes e a garoa me incentivaram à troca. De qualquer forma foi bom: houve um clima de subway no metrô, de fog, alguma coisa londrina que não sei determinar ao certo. Muitos botafoguenses, alguns tricolores, várias meninas lindas, todos devidamente agasalhados.
E tive lembranças.
A primeira, quando foi necessária a triagem para a linha dois, que conduz até o estádio. Sou do tempo em que eram somente as estações de São Cristóvão e Maracanã - hoje, é um mar delas, chega até Pavuna, coisa impensável antigamente.
Outra, durante o jogo, com pouco público, devido às campanhas reticentes dos times e o frio, mais o afastamento natural que tem ocorrido dos estádios: televisão, preços, violência, tudo tem sua parcela. Houve um Fla-Flu há vinte anos, também num dia chuvoso, que teve vinte mil pagantes; eu achei um absurdo - como poderia um jogo dequela estampa ter um público tão pequeno? Agora, dependendo da ocasião, vinte mil é para lamber beiços inesgotavelmente.
O jogo em si não trouxe os alfarrábios à minha mente. Foi fraco, lento, quase desinteressante, indigno da rivalidade centenária entre o Fluminense e o Botafogo. Porém, quem frequenta o Maracanã sabe da magia que é estar nele presente, nem que seja para vaiar a pior pelada dos últimos doze mil anos - e quem frequenta de verdade, com fé, não concorda e jamais há de concordar com a aberração que seria demolir não um estádio, mas a prima dona do futebol brasileiro que, copas fora ou não, ainda faz as vezes de banca no carteado da bola. Quando o jogo é ruim dos dois lados, tirando uma surpresa do destino, termina como ficou de verdade: com empate.
O dia frio teve seu último capítulo de lembranças quando desci a avenida Maracanã. Subitamente, deixei-me tomar pelos anos setenta. Na mesma avenida, outrora, meu pai dava-me a mão para atravessarmos. Em sentido contrário ao dos carros, virávamos à direita, na São Francisco Xavier, invariavelmente à espera do 434 ou 435, que nos deixava na porta de casa, Siqueira Campos. Tempos de uma casa muito pequena, estávamos até sem mesa de jantar; minha mãe preparava a comida e servia numa mesinha que não tinha mais do que um metro de área. Bebida era refrigerante, feito até hoje. Na televisão, a espera pelos gols do Fantástico e, mais tarde, pela reprise do jogo na TVE. Não foram poucas as vezes que isso aconteceu, basicamente entre os anos de 1979 e 1981, quando então eu já comecei a ir sozinho ao estádio - recordar é viver, tempos em que era normal um garoto de treze anos ir sozinho ao Maracanã.
Ao final da avenida, prestes à tradicional direita, vi-me sem a mão de meu pai, sem o 434, a Siqueira Campos. Tenho hoje duas mesas, quase grandes, com refrigerante. A família estaria em casa, felizmente, mas é certo que nenhuma janta estaria à minha espera. TVE? Gols do Fantástico?
Dei-me conta de que, mais do que a magia do futebol, tão embriagante para mim, é a eterna saudade de ser criança, criança na essência absoluta, e não ter que enfrentar as segundas-feiras com suas gentes, reclamações, contas e tristezas vãs.
Paulo Roberto Andel - 31/07/06

Thursday, July 20, 2006

Ode à pequena mendiga

Lembro-me de que uma menina era linda
Logo à vista fitei seus olhos esverdeados e faiscantes
Trajava uma roupa poída, porém tratada e honesta
Alguns traços cinzentos cobriam os braços maltrapilhos
Esmolados, esfomeados na escada da estação de trem
Que avizinhava-se da Rua da Matriz

Eu, nós, eu, criança tomada pela mão, trazida pelo pai
Era menino de longe, muito longe, outra Copacabana
Ela era pedinte, talvez filha da outra mendiga na parte baixa
Chorando pelas moedas aos pés da mesma escada

O pai me passou na roleta, eu despedi-me com o olhar para nunca mais
Não sei dizer da formosura de seu rosto, as formas, outros detalhes
Cabe-me apenas recordar de sua candura e seu olhar
Brilhante, colorido, desesperado, fugidio


Não haviam ensinado-me o que eu tinha acabado de sentir
Um breve instante que há muito trago no peito, na memória
E sempre recordo toda vez que a mulher mais linda
Já vista pelos doces olhos do meu cansado coração
Surge à minha frente, de repente, em trajes vermelhos, pretos

Volto a ser criança e me espanto com a imagem distante
É o amor que me remota à beleza da mulher, a leveza da menina
Que mora eternamente na mendicância, em qualquer escadaria
Que faça às vezes daquela, perto da Rua da Matriz

Onde estará a menina? Viva? Linda? Vadia?
Onde morrerá a menina? Perdida na esquina?

Onde reside o amor que inunda minh’alma desde a infância?

Perto de algo que lembra Cristo?
Longe de tudo o que fala de Deus?


Paulo Roberto Andel - 20/07/06

Parassimpático

Parassimpático

Feito de cranianos nervos
Alojando-se pelos núcleos
Alvejando certos órgãos

Sacramentando vidas
Vistas, faces, vozes, vagas

Parassimpático
Perto de ação final
Morando nos gânglios
Tronco cerebral
Medula sacral

Do vago a Edinger-Westphal

Parassimpático
Parasatisfeito?

Paramétricontroladoesquerdorsonu



Paulo Roberto Ândel - 20/07/06

Friday, July 14, 2006

Sodade

Bastou um estalo, um breve sussurrar da televisão de baixo volume, um sono leve e eu me deparei com o branco opaco do teto.
A meu lado, não estava quem eu somente queria.
Havia silêncio a preencher os espaços d'alma, majestoso feito duas mil orquestras num carnaval de sonhos a olhos abertos, atentos.
Não era o posfácio de um dia difícil, tampouco resquício de mágoa ou desconforto. Nada disso.
O teto beijou minha vista quase embriagada e me trouxe à mente uma única palavra: saudade.
Ah, a saudade! Esse rio, um turbilhão.
A saudade que mora em Cabo Verde, numa canção de Cesaria Evora, preencheu-me. Tudo junto, num instante.
Era do amor que tanto prezo, sem retorno. Dos amigos queridos, que foram para o infinito. Breve lembrança da oitava série, debruçado na janela da sala e fitando o Atlântico Sul. Corrida na pista do Forte do Leme, picolé com Vera. Jogo de botão debaixo da escadaria do shopping center. Reunião ao sábado no grupo de escoteiros. Não-beijo na Tatiana, perto da Sá Ferreira. A pizzaria Caravelle. O bar do "Seu Manel". A casa do Buja. Atari com Ricardinho. Arroz à piemontese na Bella Blu. Viagem despretensiosa para São Paulo, aparentemente sem maiores motivos.
Em segundos, minha vista firme no vazio do teto serviu de combustível para cinco mil viagens, todas somente possíveis na perfeita harmonia da confusão mental, cada idéia em dois segundos enquanto o mundo girava muito mais rápido do que de costume.
Saudade dos meus tempos de faculdade. Saudade do Maracanã, da universidade. Saudade de Arraial do Cabo. Saudade de outra linda Tatiana. Teresópolis. Raiz da Serra. Patis. Guanabaras. Niteróis, especialmente: uma viagem que fiz na madrugada, sozinho na proa da barca, sentindo-me um verdadeiro pirata e deliciando-me com o barulho breve d'água, na solidão mais bem-acompanhada da minha história. Friburgo, na volta, abraçado à mais bela das belas. Resende, na ida. Mendes, na estadia.
Quebrei o tempo por um instante e liguei o aparelho de discos. A doçura da poesia de Francisco para superar beleza do outrora silêncio.
A fresta da janela permitiu-me ver outros quartos, de outros apartamentos. Luzes apagadas, ausência de outros ruídos, todos os tudos desligados. Talvez três da manhã, imaginei.
Outras saudades bateram-me no peito preciso. Das mais simplórias, feito a de um milk-shake, até as de maior sofisticação, tal como um show de Jane Monheit. Saudade da boa conversa do Moraes. Saudade da viagem com Tatiana. Saudade da prosa de Breno. E Alessandra? E Luciene? E Ana. Todas de beleza sem fim.
Deixasse o tempo correr em meu descanso, não faltariam motivos para lembrar e pensar em mais e mais saudades. Algo que se sente e é difícil de descrever ao certo, mas que pode ser traduzido como um prazer celestial de repetir o que se passou - mesmo que essa passagem ainda esteja presente e que vá se repetir por muitas outras quinzenas.
Juarez Machado, o grande artista, disse em certa vez que só seria realizado em sua profissão quando conseguisse desenhar a saudade.
Como expressar a saudade em arte? Como dialogar com a saudade? Eu não sei. Dela, minha ignorância só permite-me aproximar através do sentir, do pensar, do refletir no meio de madrugada vadia, entre calados e música de leveza. E foi isso que tanto fiz em efêmeros momentos do descanso interrompido.
Imaginei ser hora de guardar a saudade, para ter saudades da saudade e posteriormente recordá-la, sorvendo cada pedaço feito uma deliciosa iguaria ou um drinque apoteótico; dei cabo temporário aos pensamentos.

Recolhi-me à prévia antes do novo sono discreto.

Idílio à vista não havia, meu coração era morador de um bairro distante, suburbano.

Não pedi licença em meu espaço na cama. Desnecessário, pois.


Paulo Roberto Andel - 14/07/07

Monday, July 10, 2006

Fora de sim

Quando dei por conta, eu não estava mais ali
Éramos muitos na companhia, todos falantes, felizes
Meu silêncio se fazia de voz aguda, translúcida
Transportada para a calma infinita
No vazio que era pura presença e pertinência

Havia algo de feliz no semblante da moça
Decerto não sei descrever na plenitude
Mais que bastante, por mais de um instante
Contagiado fiquei, solidário e participante
Não era a mudez que me restringia do ato
Pois fato era que eu permanecia
Com a chama ardente em meu coração

Houve um momento fora de propósito
E poucos foram dos mais atentos
Foi relento que nos deu testemunha
E carinho nos serviu de guarita

De repente, veio um rompante
Dois lábios que avoaram ligeiros, acesos
Feito aves em bando, para meu espanto

Quando dei por conta, eu não estava mais em mim
Era toda praça, cada pedaço, todo lugar
Toda estrada de batida terra, paz e guerra
Sóis e céus por detrás dos véus
Meu lugar era dela, por ela

Presente sentinela

A guardar o melhor do amor.


Paulo Roberto Andel, 10/07/06

Tuesday, July 04, 2006

Um rosto

Minha vista enevoada
Fitou um velho rosto

Entre tantos na multidão

Com seus olhos pequenos
Lábios limpos
Saborosos
Sorriso de linho
Moldura de cachos
Especiais
Nada banais

Calei frente ao rosto
Consenti
Carinhei minh’alma
Deserta
Pequena
Vaguei no mar da lua
Quase nua

O rosto me deu uma prece
Agradeci o viver