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Friday, April 26, 2024

Casilhas

Está lá há décadas, aos pés do Shopping dos Antiquários. Era o bar reserva da minha turma. Nosso aquário natal era o Sniff's, alguns metros depois, já dentro da galeria.

Uma vez ou outra o pessoal dos escoteiros passava lá. Eu, calouro de faculdade, voltava de Niterói e saltava na porta depois da baldeação, 996 até a Praia de Botafogo - Sears! - e 434 ou 435, o que viesse primeiro, até a Siqueira Campos.

Macedo, que foi nosso chefe no grupo e uma pessoa, digamos, excêntrica, gostava do boteco. Em certa ocasião, sabe-se lá por que, desandou a falar sobre a importância da higiene íntima masculina entre bebuns discutindo o jogo do Flamengo. Mais: declarou quantas vezes fazia a assepsia peniana diária e começou a questionar os interlocutores sobre suas estatísticas de combate ao esmegma. Entre risos, alguém foi curto e grosso: "Quer lavar pra mim?". Ele ficou put0 por alguns instantes, mas acabou rindo também.

Nosso grande ano pelo Casilhas foi em 1986 por dois motivos: a ascensão midiática do pagode com Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Jovelina Pérola Negra e grande elenco, mais a Copa do México. Dois motivos para a realização de inúmeros churrascos, quase todos resolvidos na hora. Vai ali nos Supermercados Leão, compra carvão e bebida, alguém busque a churrasqueira, a carne a gente vê depois. Linguiça, asinha de frango, uma carninha e risos, muitos risos. Charlie, o também excêntrico gringo que morava nos arredores - e que desconfiávamos ser um mercenário de tanto que ia ao Paraguai, sem trazer qualquer muamba - passava pela calçada com uma estonteante negra de um metro e oitenta, para disparar seu brado clássico "OH, SCOTEIRRRRSSSSS". 

Um churrasco acabou triste, também por dois motivos, um à vista e outro a prazo. Copa do Mundo, Brasil e França. Perdemos nos pênaltis. Na outra Copa, ainda criança, eu nem fiquei triste pois achei que o time de 1986 seria o mesmo, uma doce ilusão. Muita coisa havia mudado. Mas a gente tinha confiança e o Brasil fez um partidaço, perdeu vários gols - Zico de pênalti, Muller na trave no último minuto da prorrogação (foi isso?) e acabou castigado. Ficaram as boas lembranças dos golaços de Josimar e Careca, Júnior no meio e o jovem Branco voando. Terminado o jogo, não teve samba. Continuamos comendo, mas com o silêncio que só o nunca mais proporciona. Nunca mais fizemos churrascos lá, nem em outro lugar. Anos mais tarde, aquela turma ia se separar para sempre.

Pelo Casilhas, volta e meia passava Ramiro, famoso não pedinte em situação de rua que vivia pela Siqueira Campos. Era silencioso e muitas vezes era visto picando papel, como se aquilo fosse uma terapia. Certa vez, do nada, acertou um soco num cliente na porta do bar e foi embora, sem falar nada. À primeira vista era uma agressão, mas a vítima era fascista. Vá entender. Mr. Éter, outro ícone das ruas do bairro, também passava por lá e bebia a purinha - na verdade era engambelado com água da torneira, o que pode ajudar a explicar sua longevidade depois de anos mergulhado em éter. 

O bar continua. João não está mais no balcão. Aos sábados tem calçada cheia, mesas e cadeiras - uma evolução - mais churrasco. Os personagens passam, mas certas coisas nunca mudam. É Copacabana, meu nobre. 

@p.r.andel

Thursday, April 25, 2024

saco cheio pacaraio

Estou de saco cheio.

Estou de saco cheio. 

Definitivamente estou de saco cheio.

Não é que eu tenha muito a perder. Na verdade, eu já morri. O que falta é finalizar. Enterrar, terminar, tchau e depois de duas semanas ninguém se lembra de mim ou de você.

Mesmo morto, eu estou com saco bem cheio é porque acho que o Brasil podia dar certo e o Rio de Janeiro podia dar certo. 

Mas não dá.

Eu tô de saco cheio de ver tanta gente chorando de fome na rua ou então desmaiada, maltrapilha, porque não tem absolutamente nada. Não aguento mais. 

Eu estou de saco cheio de ver em mil janelas anúncios de "vende-se" e "aluga-se quando eu não tenho onde morar. 

E estou de saco cheio de ver mil portas de lojas fechadas, com anúncios cujas negociações nunca mais vão se concretizar. 

Acabou. O comércio de rua de vários bairros do Rio simplesmente morreu. 

Eu tô de saco cheio do ódio, da ganância, da indiferença e do desprezo. Do desdém.

Eu tô de saco cheio do mau caratismo, da inveja, da maldade e da violência. Eu tô de saco cheio de ver gente arrogante, que se julga certa ao humilhar e menosprezar os outros, mas mal serve para respirar. Devia pagar imposto sobre respiração. 

E também tô de saco cheio de tanta gente boa que não tem uma mísera oportunidade de fazer coisas boas legais, progredir, porque todo esse sistema é opressor, excludente e humilhante ao extremo. 

Eu tô de saco cheio de andar na rua e ver o asfalto vazio. Sem carros como se fosse um feriado, simplesmente porque as pessoas não têm dinheiro pra botar gasolina nos carros velhos. E depois fico com mais saco cheio, porque minha única diversão é a televisão e quando ligo, ouço sobre PIB, emprego desenvolvimento, investimentos, mas nada disso coloca um único ovo a mais na minha geladeira vazia. 

Eu tô de saco cheio de ver as pessoas colocando as contas dos problemas alheios na falta de fé. Fulano sofre porque não tem fé, o fulano sofre porque não tem Deus, faça-me o favor. Será que Deus não tá olhando as pessoas que são humilhadas todo dia na SuperVia, nem está olhando todas aquelas que descem a Rua do Lavradio na hora do final do expediente pegando biscoito para almoçar, por que não têm dinheiro para outra coisa? Aí na TV o sujeito diz que biscoito recheado faz um mal horrível, mas não estão nem aí com o poder de compra do trabalhador, que obriga o biscoito. 

Eu tô com um saco tão cheio que até o meu time de futebol, que é uma das minhas pouquíssimas alegrias, volta e meia me dá aborrecimento e me tira a vontade de ir ao estádio, não pelo time em si, mas pelo que acontece em torno dele. Gente ruim, escrota, vendida, negócios escusos.

Eu tô de saco cheio daquelas pessoas que desaparecem e te deixam a ver navios, para depois te procurar quando precisam de alguma coisa pontual. Inclusive tem a eleição chegando e você já sabe: sempre tem alguém querendo te falar de um grande candidato, de uma grande maravilha, de um grande projeto que vai do nada a porra nenhuma e só serve para colocar gente empregada em gabinete. 

De forma alguma negando a importância da política das instituições, pessoal. É só uma constatação. Metade da Alerj está alinhada à milícia. Eu não sei nem dizer o que que tem na Câmara dos Vereadores, mas deve ser bem pior, vide o que fizeram com Marielle e Anderson. 

Eu tô de saco cheio de passar na rua e ver pessoas que acabaram de ter problemas, procurando ou a polícia ou a Guarda Municipal ou algum representante de instituição, e serem tratados com desprezo como se não fossem nada, porque ali não está um rico ali, não está alguém com sobrenome famoso, não está alguém que mora na orla do Rio de Janeiro e é assim que a maior parte das pessoas trata as outras nessa porra dessa terra, se você não tem dinheiro. Se você não tem um grande sobrenome e se você não mora na orla do Rio de Janeiro, você é ninguém. É exatamente assim que é uma parte das pessoas te trata. 

Nem a internet escapa. E aquele fulaninho ou fulaninha que nunca dá apoio a nada do que você faça, nunca compartilha nada contigo, não pergunta nem como você está durante anos, não interagem, mas basta que você publique qualquer coisa que minimamente a contraria e ela vem cheia de pedras, né? Como a figura defensora da moral e da ética contra a maldade do mundo. É hipócrita que chama essa gente, né?  Ou é escrota? 

Eu tô com saco cheio de ser um excluído na minha própria cidade. E o pior é que diante de toda essa porcaria que a gente vive, de toda essa miséria e de todo esse descaso, eu ainda sou privilegiado mesmo passando por momentos desesperadores. Isso não quer dizer que eu estou bem; pelo contrário, eu estou muito mal, mal como nunca estive. Quer dizer que tudo é uma merda muito pior do que se pode imaginar. 

Você no meio da tragédia, no prédio em chamas e a pessoa vem falar para você "seja positivo", "pense coisas boas" , "fique bem". 

Dá vontade de mandar tomar né? 

Você ali na merda sofrendo, chorando, desesperado, sem uma única mão que possa te ajudar, a pessoa vem e fala "fique bem". Vá pra puta que pariu. É melhor não falar nada e ser escrota raiz mesmo. 

É isso. Essa é uma quinta-feira de abril de um ano ruim e que provavelmente vai piorar. Não é negativismo, nem palavras atraindo "coisa ruim",  mas apenas analisando friamente a realidade dos fatos que aí estão. Por educação ou por conveniência, muita gente prefere varrer para debaixo do tapete e fingir que não existe. 

Ou você não conhece ninguém que atravessa de um lado do para o outro da rua, só para não passar num grupo de pessoas em situação de rua? 

Você não conhece ninguém que já tenha dito que nunca viu uma pessoa comendo lixo na rua? 

Pois essa a mistura da alienação com a indiferença, com descaso, com dane-se o outro. 

A cidade é maravilhosa na geografia e em parte dela.

A outra parte é só humilhação para milhares de pessoas, debaixo das miras de fuzis, com riscos de estupro de morte, tortura etc.

Chamam isso de democracia, tá bom? 

Chega, pessoal. Pouco importa se eu já morri ou não, ninguém se importa com isso. O que importa é que eu continuo de saco cheio vivo ou morto, eu vou continuar de saco cheio vivo o morto, eu nunca vou aceitar essa situação que vive a minha cidade, o meu estado e até certo ponto o meu país.

Fomos trucidados por nós mesmos. 

Fuzilados por aqueles que acham que a solução é destruir o outro e manter tudo como está. Resultado: o que era péssimo, piorou. 

Daqui a pouco esses espíritos de porco vão ressuscitar algum mito para tentar dizer alguma coisa que nos leva do nada a lugar nenhum. 

Ou melhor, pode até levar, né? Das investigações policiais até a quadrilha.

Tuesday, April 23, 2024

Pequenininho

Minha mãe me chamou de pequenininho por sua vida inteira. Era assim que ela me via quando eu era bebê, e a imagem ficou para sempre, mesmo quando eu já era muito maior do que ela. Sei como é: tenho amigos que conheci ainda crianças quando eu era adolescente, e agora eles são quarentões mas ainda os vejo como garotos. 

Pequenininho. É o que sou. O que sempre fui. Minúsculo.

Saio à rua, olho para os prédios e vejo como sou uma formiguinha perto deles. Mesmo quando passa um ônibus ou um caminhão grandão. Na barca da Praça XV eu me sinto minúsculo. 

Eu sou pequenininho. Um número. Um CPF pobretão e triste nessa terra de tanta mágoa e indiferença.

Minúsculo. Vejo tanta gente sofrer pela rua e não tenho capacidade de ajudar a mudar suas vidas. Tanta fome, tanto choro e olhares tristes, vazios, a caminho da fila do ônibus ou do trem.

Pequenininho. Sem pai nem mãe, sem perspectivas, com a lâmina de uma adaga me lambendo o pescoço e, até esta linha, sem saber como escaparei de tragédias. 

Sozinho. Pequenininho. Sem ninguém pra me ouvir, me acudir, nada. Se morro agora, só vão descobrir quando feder. E o pior: literalmente não tenho onde cair morto. 

O que eu tenho é meu corpo e minha cabeça, que sonha o impossível e cria coisas, todas elas sem valor comercial mas artístico algumas vezes. Minha cabeça pequenininha, cabecinha de Santo Onofre como dizia minha mãe. Ela me amava. Meu pai também gostava de mim, do jeito dele. Meu irmão acho que não gosta de mim, senão não tinha sumido. Agora ninguém mais gosta. Ninguém. Nunca fui tão ninguém. Tão pequenininho. A formiguinha na beira da pia com louça suja, sonhando com uma migalha de alimento. 

Acho que sou pequenininho porque a gente se ilude a vida inteira achando que cresceu, que amadureceu e envelheceu, que passou a fazer só coisas de adultos, mas a verdade é que somos crianças para sempre. O corpo muda, o tempo passa, mas à medida que envelhecemos, mais o passado é importante. O começo, os sonhos, as pequenas coisas, a minúscula e efêmera felicidade. A saudade. 

A cada dia eu penso mais na criança e no jovem que fui. Não é que fosse tudo bom, porque estava longe de ser, mas quando você é jovem sempre tem a perspectiva do futuro - a chance to heaven! 

Eu tinha carrinho, eu brincava e jogava bola. Eu lanchava e via desenhos com minha mãe - ela ficava muito feliz comigo, me chamava de seu tesouro, de seu reizinho. Ela gostava de mim mesmo. Nós éramos bem pobres mas tínhamos algum conforto - e eu tinha a praia, o futebol, o sonho. Às vezes lanchávamos no Bob’s. Quando o caixa estava bom, comprávamos pizza da Bella Blú. Eu jogava botão e tinha dias bons nos acampamentos escoteiros. Meus pais tinham 40 anos - eles eram jovens demais. 

Eu só conheci a felicidade pequenininho. Eu só tenho a esmola de felicidade quando me sinto pequenininho, parte de um mundo de fantasia onde não havia ódio, maldade nem ganância. Onde todo mundo podia ter uma casinha, roupas, uma televisão e comida. Onde ninguém vivia dois anos chorando todo dia em desespero pela miséria. 

Saiu um gol bonito na televisão. Brusque x Mirassol. O futebol me faz ficar pequenininho, feliz num Maracanã que já não existe.  No estádio eu sempre fui pequenininho, sonhando que todo mundo do meu lado era meu amigo. A mão do meu pai me puxando provava que eu era pequenininho. E como já se passaram quase cinquenta anos, certo é que sou um grãozinho de areia diante do tempo. Pobre, triste e desesperado grão de areia, procurando por uma casa que não existe, pessoas queridas que estão mortas e um futuro que sequer repete o passado.  


O goleiro que lavava carros

São três horas da manhã do dia de São Jorge e me lembro de Ortiz. Talvez só eu lembre porque talvez eu seja o único sobrevivente daquele tempo. Não, eu sou o único mesmo. 

Em 1976 meu pai tinha uma loja no centro de São João de Meriti. Chamava-se Heduwi. Eu sabia que as três sílabas do nome eram referência a três sócios, mas não cheguei a conhecê-los. Na loja trabalhei pela primeira vez, empacotando compras e fazendo contas. Eu tinha oito anos de idade. 

Aquele ano seria um dos mais tristes da minha vida por causa do Natal, mas não quero falar disso agora. A própria loja faliu no fim de 1976. Um duro golpe para meu pai. Justamente nos tempos de grande badalação da Máquina Tricolor, ele nem tinha como saboreá-la por tantos problemas pessoais. 

Eu ia para a loja quase todos os dias. Ela era grande e tinha várias coisas, de roupas a produtos capilares. Perto de nós, morava o Seu Dalmo numa casa bem grande e numa rua sem asfalto, lembro bem. Uma vez fomos visitá-lo e ele fez um sanduíche de queijo para mim. Foi a primeira vez que me lembro de ter visto um cortador de queijo. Seu Dalmo era legal. 

O Ortiz. Ele não tinha esse nome, nunca teve, foi uma invenção minha. Ele era atarracado, louro e usava uma faixa na cabeça, era igualzinho ao Ortiz, goleiro do Atlético Mineiro. Lavava carros. Ele sempre carregava uma lata bem grande de óleo Castrol GTX para carregar água, e ela era tricolor. Tudo era Fluminense pra mim em meus sonhos de criança, vivendo dias difíceis com meu pai falindo. Alguém disse que o Ortiz tinha sido um homem de posses, mas perdera tudo por causa do alcoolismo - imagine o meu desespero ao ver meu pai bebendo tanto por desgosto. Enfim, o homem que lembrava o goleiro ia e vinha quase todo dia com sua grande lata, que era seu instrumento de trabalho. 

A véspera de Natal de 1976 foi a última vez que estive na loja. Ela fechou de vez dias depois. Nunca mais voltei ao Centro de São João de Meriti, nem vi Seu Dalmo, nem o Paulista, um vendedor corintiano que estava sempre por lá e, claro, tirando uma onda com seu time. Foi no chaveiro do Paulista que vi pela primeira vez o escudo do Corinthians e achei bonito. Semanas antes, falecera o Sr. Santana, que sempre levava pão de queijo para mim e minha mãe. Também me lembro que a primeira vez que bebi um refrigerante tirado de máquina foi perto da loja, na rua da Matriz. Foi um copo de Pepsi, achei delicioso. 

São várias lembranças de uma época difícil da minha vida, mas que estão muito presentes. Sou a única pessoa viva das citadas acima, eu era uma criança. Ali perto, ainda nasceria uma garota bonita chamada Patricia, que eu só iria conhecer trinta anos depois, na faculdade, não na UERJ.

Ortiz, nunca mais. O que terá sucedido? Não sei dizer. Só sei que lembro e lembro. Eu sou o único sobrevivente dessa miscelânea toda de quase 50 anos atrás. Até quando, não sei.

@p.r.andel

Monday, April 22, 2024

A minha MTV

Em 1990, eu era um garoto estudante de faculdade, sem parentes importantes, vindo da própria capital, duro, cheio de sonhos e tentando buscar um emprego. 

Tempos difíceis: a Era Collor não perdoava ninguém. O desemprego e a fome eram regra. 

Mas aí apareceu a MTV Brasil na televisão e as coisas mudaram para melhor. Pra mim, melhoraram paca. Imagine: eu não tinha grana pra comprar discos, mas podia ver e ouvir N artistas. 

A linguagem do videoclipe, que já existia há vários anos, ficou definitivamente popularizada no Brasil. Ela já vinha do Fantástico e de programas como o saudoso BB Video de Eládio Sandoval e Billy Bond, mas a MTV veio como um furacão varrendo tudo, trazendo acesso aos trabalhos musicais de números artísticos que não tocavam em rádio no país, sem contar a multidão de artistas nacionais que passaram a aparecer na TV justamente por conta de seus clipes. Aquele pessoal descolado interessante divertido, gatas extraordinárias apresentando as atrações sempre com uma perna mais inclinada do que a outra. 

A MTV colou bem no Rio de Janeiro. Chegou praticamente junto com o Rock in Rio 2 e nos tempos das melhores edições do Hollywood Rock. Teve de tudo: Nirvana (com Kurt Cobain ensandecido), Alice in Chains, Red Hot Chilli Peppers e outros shows antológicos, como o auge de Titãs e Paralamas tocando juntos. Foi na MTV a explosão do Manguebeat com Chico Science e Nação Zumbi mais Mundo Livre S.A., e Skank, Pato Fu, Planet Hemp, Cidade Negra, Raimundos e grande elenco. E o Capital Inicial? A partir do Projeto Acústico MTV, a banda deu uma guinada tão grande em sua carreira que se tornou muito mais popular do que em sua primeira fase. 

O Acústico gerou registros espetaculares de nomes como os próprios Titãs, Paralamas, Cássia Eller, Lobão, Marcelo D2 e outras feras. 

Apesar da sua audiência modesta, a MTV formava a opinião definitivamente e ditava as regras. Se nem todo mundo ouvia, todo mundo sabia do que se tratava. 

À medida que fez a travessia do século XX para o XXI, a MTV aos poucos foi diminuindo a sua cota musical e fazendo mais programas de auditório. De toda forma, eles eram sempre interessantes, fossem pelos debates, pela vanguarda e pela quebra de paradigmas, vide o beijo gay ao vivo no Beija Sapo, atração comandada por Daniela Cicarelli. 

Em sua última grande fase a MTV ainda revelou um monte de jovens humoristas para o país, numa safra de nomes como Marcelo Adnet, Dani Calabresa, Paulinho Serra e mais um monte de gente com programas interessantíssimos no canal que ainda tinha a música, mas não como o principal carro-chefe. Depois, atolado em dívidas, o grupo Abril liquidou o canal no Brasil por questões financeiras. 

Tempos depois, entrou uma nova MTV no ar, mas ela mas ela não tem nada a ver com o espírito da MTV Brasil original. Só tem o nome. Vida que segue. 

O que deixa saudade mesmo é aquele tempo de grandes bandas, de VJs fabulosos - Marina, Thunderbird, Gastão, Sabrina etc -, de programas divertidíssimos e de muita informação musical que hoje se perdeu no mundo da internet, né? Onde tudo é diluído e para você achar determinados conteúdos, tem que fazer um verdadeiro trabalho de arqueologia.  A MTV não, ela te dava tudo de bandeja. Vinte anos de música, sorrisos e vanguarda. 

Wednesday, April 17, 2024

Disappointed

Public Image Ltd., 1989


What friends are for?

What friends are for?

What friends are for?

What friends are for?

What friends are for?

What friends are for?


Promises, promises

Old tired, worn out second hand sentences

One thing, with you is certain

You're a really sad person, so sad


Disappointed a few people

When friendship reared its ugly head

Disappointed a few people

Well, isn't that what friends are for?


What friends are for?

(What friends are for?)

What are friends for?


You, you're just a really bad person

Who won't, you won't, listen to anyone

No not you, with those half moon eyelids

Just babbling on, your useless defenses, so sad


Disappointed a few people

When friendship reared its ugly head

Disappointed a few people

Well, isn't that what friends are for?


What friends are for?

(What friends are for?)

What are friends for?


This erratic haphazard, fluttering

This toing and frowing, like a confused moth

The collusion, illusion, it's all ad infinitum

You're a really sad person, you're really so sad


Disappointed a few people

When friendship reared its ugly head

Disappointed a few people

Well, isn't that what friends are for?


What friends are for?

(What friends are for?)

What are friends for?


Fools and horses

Running their courses

And brow beaten down

Like dust on the ground


You cheat easily, like sweet charity

And all of the bastards, the world despises

Springing surprises in newer disguises

You cheat easily, like all charity


Tuesday, April 16, 2024

cotidiano

 

os artistas tentando

esculpir amor 

frente

ao mundo em chamas 

com cheiro de 

carne queimada,

solidão e fracasso 

- os artistas insistem! 

Sunday, April 14, 2024

Janjão

(Publicado originalmente em julho de 2022)

Há muitos anos, mais de vinte, eu saía do trabalho a pé para casa e Seu Janjão me cumprimentava com um oi, um aceno de mão ou algo simples. Ele morava com a família num sobrado a metros do meu prédio, e lá ficava com sua cadeira na porta. Praticamente de segunda a sexta, todas as semanas, todos os meses em fins dos anos 1990. Nunca falamos nada além dos cumprimentos, mas eu achava legal que um vizinho me reconhecesse e se preocupasse em dar um oi. Parecia coisa boa das cidades do interior. Ele me lembrava o Seu Madruga, ahaha.

Era uma época difícil: meu pai parou de andar, o mundo desabou mais uma vez e lá estava eu sob os escombros. Amigos deram as costas, a injustiça era a sina. Ia e voltava do trabalho para casa. Tudo era racionado para que pudéssemos sobreviver (nada diferente de agora, exceto por não ter mais família). A internet estava começando e ainda viria muito ódio pelo caminho. 

Muitas e muitas vezes eu vinha pelo caminho amargurado, triste, mas perto da portaria o Seu Janjão acenava e eu me sentia melhor. Eram dias em que as pessoas basicamente só falavam comigo por motivo de trabalho. Pelo menos eu tinha a MTV para me distrair. Dureza. 

Em algum feriado em casa ou folga repentina, alguém bateu à porta numa tarde de sol. Não esperava ninguém, achei estranho, fui espiar. Era um garoto, pedindo colaborações para o velório do Seu Janjão, que morrera de manhã. Fiquei paralisado. Peguei a carteira, dei o que tinha, o rapaz agradeceu e foi batendo em outros apartamentos. Passei o resto da tarde pensando naquele senhor educado, que nunca soube meu nome mas fazia questão de me cumprimentar. Aquilo me entristeceu profundamente.  

Dias depois, voltei à rotina de trabalho. Vinha da Rua do Senado, pegava o último trecho da Mem de Sá e logo o começo da Rua de Santana. Perto de casa, nenhum aceno ou oi. Não havia um cumprimento. Perdi para sempre o amigo que se preocupava comigo, mesmo que sequer tenhamos sido amigos de ofício, claro. O que importava era a generosidade, o apreço, o velho sentimento de fraternidade. 

@p.r.andel

Para voltar no tempo

Neste exato instante eu gostaria de encontrar com meu amigo Fred e partir para o supermercado, não qualquer um, mas Supermercado Leão. Lá chegando, a gente compraria pão francês, Coca-Cola ou Pepsi - dependendo do Fredão - e pasta de pão Alouette de ervas finas, tudo para fazer sanduíche quando chegássemos na casa dele e, depois, jogarmos um carteado daqueles de gastar à tarde, quando você tem 18 ou 19 anos de idade e, claro, não tem emprego nem ocupação afora o estudo. 

Queria também que o Gustavo nos ligasse e, de repente, aparecesse  com aquela sacola cheia de discos que ele carregava, LPs maravilhosos e capas antológicas, e tome Kraftwerk, Rolling Stones, Level 42, Yes, Genesis e tudo mais que você possa imaginar. 

Eu queria também estar na casa do Ricardinho bem tarde da noite, enquanto ele Fred se digladiassem numa batalha de Atari - Enduro, Pitfall, Space Invaders. Nunca joguei nada, sempre fui uma pereba em diversões eletrônicas e nem participava, mas gostava de ver. Sempre gostei. Geralmente a gente saia de lá à meia-noite, talvez uma da manhã e vinha solitariamente pela Santa Clara, até entrar na Boca do Lobo, ganhar o Bairro Peixoto deitado em silêncio esplêndido, depois voltar para casa. 

Acho que eu queria mesmo era estar por volta das seis da tarde de sábado no Bar Sniff’s, depois da reunião dos escoteiros. A gente sempre se reunia por lá para bater papo, trocar ideias. Os frequentadores mais velhos sempre nos escutavam e nos davam atenção, a gente ria com as galhofas e piadas típicas dos anos 1980 e ficava ali até nove ou dez da noite, nem saía, era nossa diversão muitas vezes. 

Sei lá, eu queria agora descer e caminhar tranquilamente pela Figueiredo Magalhães até chegar na praia, depois caminhar ao lado do Atlântico Sul até chegar na Francisco Otaviano, subindo toda e encarando as pedras do Arpoador. Quantos poetas fizeram isso, né? Cazuza deixou isso registrado em “Faz parte do meu show”. 

Há uns 15 anos ainda tive chance de pegar os últimos momentos do Cirandinha, lanchei lá várias vezes com colegas dos tempos de escola. A comida era impecável e o ambiente refinado. Muitas senhoras marcavam chás para se reunir e conversar, enfim, encontrar as velhas amigas. A gente se sentia bem em casa, seria bom estar lá agora. 

Quer saber? O que eu queria mesmo, mesmo, bem lá no fundo, era ser bem pequeno para passear com meu pai quando ele me dava a mão. A gente caminhava pela rua muitas vezes. Nós não tínhamos destino, a gente simplesmente saia de casa, dava uma volta por algum lugar do universo Copacabana, lanchava alguma coisa e retornava. Foi assim que eu descobri os nomes das ruas, dos prédios e dos lugares. Geralmente era aos sábados à tardinha. E quando você tem a mão do seu pai para segurar, viver é muito mais fácil. 

Querer tudo isso é impossível. É voltar ao passado, ressuscitar quem já se foi e ter a verdadeira chance de voltar para casa. Eu sei que é impossível, que viver é melhor que sonhar, mas numa noite melancólica e silenciosa talvez só o sonho possa me estender os braços. 


Sunday, April 07, 2024

Me dá um Barão?

Eu era garoto, tinha uns dez anos. Certamente minha vida foi melhor do que a de 90% das outras crianças, mas esteve longe de ser fácil. 

Estávamos muito pobres, meus pais batalhavam demais. 

Surgiu o Barão, em meio à inflação. Era um sonho. Eu quero um Barão. Você me empresta um Barão? A nota de 1.000 cruzeiros estrelada pelo Barão do Rio Branco. 

Foi uma das cédulas mais queridas pela população, embora a maioria não tivesse nada.

O Barão me traz à tona um tempo distante, longe de ser fácil mas que me dá saudade. Não é saudosismo, mas saudade. É que essa coisa dos sete aos catorze anos passa com velocidade astronômica, a gente não aproveita direito e, quando vê, tudo voa longe. 

No tempo do Barão, meu grande sonho era o lanche no Bob's da Domingos Ferreira. Às vezes meu pai me levava lá. Minha mãe preferia o da Avenida Copacabana, ao lado do Externato Santo Antônio. Tudo se foi. 

Ou ganhar um time de botão cristal Gulliver. O do Fluminense era lindo, verde vivo, com o escudinho envolto por um círculo amarelo. Wendell, Miranda, Moisés, Edinho e Carlinhos; Pintinho, Cléber e Rubens Galaxe; Doval e Zezé. Faltou alguém. 

Ou ganhar uma linda bola de couro com 32 gomos e me sentir um craque feito aqueles que apareciam no "Gol: o grande momento do futebol", programa da Band apresentado por Alexandre Santos, só com gols, gols e gols maravilhosos. Tinha Ademir da Guia, Leivinha, Ailton Lira, Edu Bala, Sócrates, Palhinha, Serginho e também as feras do Rio: Luisinho, Tita, Nunes, Cláudio Adão, Roberto, Zico, Luisinho das Arábias. 

Sonhar com os times de vidrilha da loja de brinquedos Dom Pixote, que ficava na Santa Clara, bem em frente às Massas Suprema com seus inigualáveis pasteizinhos. 

Outro sonho de garoto: ir à Kayat Sports da Figueiredo Magalhães (que não sei ao certo se era do Seu Carlson Gracie ou não) e comprar o escudo tricolor bordado, lindo, mais um número 5 verde, do Edinho, daqueles de grudar na camisa passando ferro. Com o escudo e o número, era só comprar uma camiseta Hering branca e fazer a camisa de futebol mais bonita do mundo. O problema era que dinheiro não era nada fácil e conseguir um Barão...

A gente jogava bola na vila, quase todo dia. Na praia também, até o início da noite. Quando escurecia, não dava pra ver mais nada. Ver a praia de Copacabana hoje toda iluminada é engraçado: os mais jovens nem sabem que a iluminação só começou em fins dos anos 1980, talvez 1988 se não me engano. 

Morria de medo de tirar uma nota vermelha. Podia perder a bolsa de estudos. Não podia errar. 

Sempre que dava, via desenhos animados com minha mãe. Flintstones, Pepe Legal, Papa Léguas, Corrida Maluca. Até hoje vejo no YouTube. Só falta a mãe do lado. 

[A dor de ser órfão é tão grande que não há como descrever, apenas sentir

Às vezes a gente jogava botão no Shopping dos Antiquários, debaixo da escada rolante. Só fiquei chateado um dia, quando os amigos não queriam que eu participasse do campeonato porque "ganhava tudo". Eu podia até ganhar, mas minha grande alegria era jogar. Até hoje me sinto bem só de mexer nos botões em casa. 

Quando tinha grana em casa, minha mãe fazia Strogonoff e bife à rolê. Nos tempos de maré baixa, carne moída com arroz, ou asinhas de frango. Pouco importava: com ela e meu pai em casa, eu acreditava até em felicidade plena. 

@pauloandel

Saturday, April 06, 2024

A alma aflita das ruas

Ó, seguinte: dentro do futebol tem uma turma que me conhece, já fiz bastante coisa. Agora, fora dele, meu anonimato é garantido. 

Não faço parte de correntes, de ondas ou de estilos; não tenho amigos em postos-chave da mídia para me exaltar; não tenho grana para a devida promoção; faço lançamento de chinelos e bermuda confortável. E também não me identifico como novidade porque já sou velho para isso.

O que faço é escrever. Faço porque gosto, agora sem precisar me preocupar com o editor muquirana, que pretende cortar páginas para economizar papel. E escrevo o que quero. Este livro, por exemplo, nasceu do incentivo do mestre Luiz Carlos Lacerda a postagens que fiz por aqui, contando pequenas histórias de pessoas humilhadas em meio à pandemia - gente que chora de fome, que não tem casa, que só tem a mão espalmada para ter o que comer, gente considerada invisível por muitos. E tem morte, dor, lágrimas, sexo gay e hetero, mais uma série de reflexões sobre o fato de sermos eternas crianças, mesmo estando tão longe disso. 

Enfim, para quem quiser conhecer parte do meu trabalho fora do futebol, este é meu livro mais recente. Tenho um blog há 18 anos no ar, mas banido aqui pelo Facebook sem justificativa plausível. Eu não sou nenhuma promessa da literatura do Brasil, não trago a mulher/homem amada(o) em três dias e, com exceção do próprio Bigode (que fez uma maravilhosa apresentação do Alma no Correio da Manhã), o resto não deu um pio sobre. Meu livro é humilde e independente, porque não aguento mais pagar 50% de consignação para quem não faz nada por ele. Mas desancar um livro sem lê-lo fica para os idiotas e ressentidos - somente eles têm capacidade para isso. 

Se você tem curiosidade sobre a degradação do Rio em Copacabana e no Centro durante a pandemia, que é a minha própria degradação também, taí. É barato e vai pelo Correio para todo o Brasil. 

Blog otraspalabras. http:// paulorobertoandel ponto blogspot ponto com. 

Encomendas WhatsApp 21 99634-8756.



Wednesday, April 03, 2024

Copacabana sussurra

VOLTEI a Copacabana. Eu sempre volto. Na verdade meu coração e espírito sempre navegam por lá. Mesmo trinta anos depois de ter sido expulso pelo crime de ser pobre. Mesmo depois de tudo. Eu vivo intensamente as ruas abandonadas do Centro e de outros bairros, mas de alguma forma sempre estou em Copacabana. Então peguei o metrô à meia-bomba na Cinelândia e fui tranquilo para a Siqueira Campos. É sempre melhor descer pelo Aterro, ver o lindo recorte da natureza que vai até o Pão de Açúcar - a cidade tão bonita mas usufruída por tão poucos -, depois entrar no Túnel Novo e se sentir num verdadeiro túnel do tempo - eu brincava disso quando era criança - até fazer a gloriosa curva à direita que desemboca na Barata Ribeiro. Acontece que eu tinha tempo curto para chegar, então o metrô é uma garantia - cara. Queria chegar a tempo no mitológico sebo L. O. Matta, que é muito bom, com excelentes discos - as atendentes são maravilhosas, o dono não. Deu tempo de pescar um João Gilberto, era o que bastava. João foi de Copa, morou com João Donato perto da Cardeal Arcoverde, é coisa nossa. Fechada a loja em minutos, naveguei pelo Shopping dos Antiquários, reverenciei meu bar morto, espiei o prédio onde morei por 16 anos, outro que frequentei por dez e sonhei encontrar algum conhecido, mas não aconteceu. Olhei bem para as lojas, elas são totalmente diferentes do que eram há trinta ou quarenta anos, mas o shopping tem uma atmosfera inconfundível. Vi uma doceria com tortas lindas e quis comprar um pedaço para a Marina e outro para minha mãe, só que Marina está a 70 quilômetros e minha mãe, ah, talvez nunca mais ou no infinito, talvez somente dentro de mim mesmo. Voltei para o metrô e saltei na Cantagalo para encontrar meu amigo Raul. Nós abraçamos e caminhamos um pouco pela Aires Saldanha, com vários bares - um rapaz e uma garota, promoters da região, nos convidaram a entrar mas tínhamos um compromisso inadiável com o Caravelle. Agradecemos, os dois eram uma simpatia, seguimos nosso caminho. Pouco tempo depois, estávamos comendo a melhor pizza napolitana do mundo - não há como explicar, só indo e comendo, mas aquela pizza tem um sabor único, feito quando você ouve King Crimson ou lê Jack Kerouac - ou ainda mestre Ivan Lessa. Comemos, rimos, fofocamos, lamentamos a ausência dos amigos de mesa e no fundo, talvez bem no fundo, não vamos lá só para comer a melhor pizza do mundo, nem somente para lembrar de todos os ótimos garçons que nos atenderam lá por décadas a fio - todos se foram -, mas é que o Xuru morava no prédio ao lado do Caravelle e, inconscientemente, a gente carrega uma ridícula esperança que ele apareça rindo e sente à mesa. É impossível porque Xuru morreu há mais de dezoito anos, mas continua presente em nossas piadas, diálogos e sentimento. Mais cedo, no Centro, encontrei Pedro, que está conosco há quarenta anos e agora está perto do meu trabalho outra vez. Depois da melhor pizza do mundo, encaramos um sorvetinho e aí era inevitável lembrar do Solar dos Couceiro, onde nos conhecemos e vivemos grandes dias de nossas vidas. Só que tudo que é bom acaba rápido e perto das oito e meia nos mandamos porque tinha Fluminense na televisão. Nós não somos torcedores do Fluminense, mas sim peregrinos dele - o perseguimos desde sempre e provavelmente morreremos assim. Até a hora da conta falamos de muita coisa, de muita gente querida e de histórias excêntricas. Agradecemos aos garçons por tudo, Raul foi para um táxi, eu peguei um Uber e cheguei em casa quinze minutos depois, uns dez antes do jogo. O Fluminense só empatou, paciência. A Cler deve ter ficado revoltada. Cochilei um pouco depois do jogo, acordei, trabalhei um pouco, tomei uma Coca-Cola geladona em lata e agora estou aqui. Não tenho sono, tenho um monte de problemas e dores, tenho uma 45 apontada para mim, tenho esperança no novo dia que já se avizinha. Penso num novo livro, em ir ao CCBB, ao É Tudo Verdade. São três e meia da manhã e toca Nirvana numa chamada do Canal Bis. Tudo isso é apenas pano de fundo porque ainda estou hipnotizado por Copacabana, porque trinta anos depois ainda sinto saudades de Copacabana, de ficar de mãos dadas com a mulher amada perto da água na Figueiredo de Magalhães. Porque penso que até o fim dos anos 1980 a praia incrivelmente não era iluminada. Porque eu ainda lembro de Fred, Marco, Luiz Magno, Ricardinho, Gustavo e eu na mesa de carteado. Porque eu lembro da Claudia, e lembro das outras garotas que iam e vinham na casa do Fredão - ele também se foi cedo demais, assim como o Luiz. Tudo é Copacabana. São três e meia da manhã, o ventilador me refresca feito ar condicionado e alguma coisa me traz a aragem de Copacabana. Terra de meu amigo Luiz Carlos Lacerda, cineasta consagrado e aclamado. Terra do divertidíssimo DJ Zé Pedro - Crepúsculo de Cubatão, quem se lembra? Eu preciso dormir, mas Copacabana sussurra: "Espere um pouco mais, meu bem."

@p.r.andel

Sunday, March 31, 2024

60 anos de nojo de 1964

Eu não aprendi sobre a ditadura imunda na TV, nem nos livros. Só a posteriori. Eu a vivi dentro da minha casa, desde que nasci, e até hoje carrego sequelas irrecuperáveis dela. 

Aos oito dias de VIDA, fui carregado por minha mãe desesperada. Ela saiu correndo de casa depois que soldados foram à nossa casa para prender meu tio, um jovem estudante de 23 anos. Um simples tropeço da minha mãe na rua, também uma jovem de 23 anos, teria sido a minha morte, mas felizmente não aconteceu. 

Tempos depois, novamente para prender meu tio, a ditadura simplesmente deteve meu pai para usá-lo como refém. Desesperado, o irmão se entregou. Nunca fez mais do que reuniões no Partido ou panfletar contra a ditadura em passeatas, mas ditadores são assim: covardes. Prenderam-no, deram-lhe o abominável "telefone" e lhe tiraram uma das audições. Não aguentando mais, um garoto que tinha sido criado em colégio interno, órfão, virou um jovem humilhado que teve como única saída o exílio. Nunca mais voltou. As sequelas da ditadura contribuíram para seu suicídio, anos mais tarde. 

Deprimido, aos poucos meu pai caiu no alcoolismo e isso nos provocou uma tragédia familiar e econômica que jamais superei. Só parou de beber quando não pôde mais andar, e isso foi o que lhe deu uma sobrevida de treze anos. 

Minha mãe sofreu demais. Jovem ainda, passou a ter vários problemas de saúde que abreviaram sua vida. Faleceu com 61 anos, mas uns 100 de sofrimento.

Além de destruir a harmonia da minha família, a ditadura ainda me expulsou de uma escola no jardim da infância. Numa excursão até à Praia Vermelha, simplesmente perguntei à Tia Diva porque a praia tinha aquele nome. Perto dela, estavam dois senhores de farda. Nunca me esqueci do olhar odioso que me dirigiram por uma pergunta da criança. Psicopatas, queriam saber quem era a criança de "traço comunista". Foram à escola, pegaram meu nome, encontraram o do meu tio, avisaram que eu deveria ser expulso para não contaminar as outras crianças. A diretora recebeu minha mãe e, chorando, comunicou minha expulsão. Uma semana depois, eu estava em outro colégio, sem saber de nada. 

Ah, muito provavelmente foi a ditadura que sumiu para sempre com a Lúcia, que era minha babá em 1973. Morávamos uma temporada bem no Largo de Cascadura. Ela desceu para comprar pão e nunca mais voltou. Meus pais desesperados foram em delegacias, hospitais, no IML, choravam o tempo todo, eu vivi aquela agonia. Isso tem 51 anos. Sou o único sobrevivente daquela casa. Nunca mais tive sinal de Lúcia. E por que teria sido a ditadura? Simples: porque naqueles anos e nos seguintes as pessoas simplesmente "sumiam" para sempre, num tempo em que o tráfico e a milícia engatinhavam. 

Perto de 1979, o Jorge sumiu. Trabalhava num depósito de bebidas que ficava na Figueiredo Magalhães, em Copacabana, perto da Vila. Nada disso existe mais: é o terreno do Metrô e do Batalhão da PM. Lá para 1981, quem sumiu foi o Carlos, jornaleiro. A banca de jornais simplesmente ficou sem abrir por dez dias, o dono apareceu, ninguém tinha notícias. Veio um novo jornaleiro. Carlos, nunca mais. 

Uma coisa que sempre me intrigou foi quando me tornei um torcedor mirim fanático. Eu ouvia todos os clássicos do Maracanã, meu pai me levava e tal. Pois bem: volta e meia noticiavam que alguém morreu na geral, tentando roubar alguém, teve troca de tiros. Estranho é pensar que alguém entrasse armado justamente no setor mais popular do estádio, com muitas pessoas pobres ou muito pobres, para roubar - os outros setores tinham gente com mais grana. Ao mesmo tempo, se sabia que muitos militantes de esquerda gostavam de ver jogos na geral para ficarem com o povo. Será uma coincidência a morte de tantas pessoas ali? É um assunto silenciado. 

A maldição da ditadura tirou a saúde dos meus pais. Doentes e sem renda, passei a sustentar a casa. Isso ajuda a entender minha penúria e minha ausência de bens. Mas eu não deixei de produzir: fiz muitas estatísticas e escrevi muitos livros. Mas é difícil, muito difícil viver com esse peso. 

Se a ditadura fez tanta coisa ruim para quem era literalmente inofensivo, imagine todo o resto que já descobrimos nos arquivos pavorosos. Em nome de uma farsa corrupta, torturaram, mataram, estupraram, incendiaram, esquartejaram e desintegraram muita gente. Vários dos crimes horríveis que você vê na TV, cometidos pela milícia e pelo tráfico, são reproduções de técnicas utilizadas pela ditadura. 

Quanta gente foi socada no sanatório de Barbacena para morrer em vida? Ou jogada na Baía de Guanabara? Ou enterrada na então deserta Zona Oeste do Rio há 40 ou 50 anos? 

E que ninguém seja ingênuo: houve muita corrupção. Muita. Essa é a principal motivação de todo golpista. Só verdadeiros otários acreditam nesse discurso de pátria, família e religião - é melhor trocar por hipocrisia, desfaçatez e corrupção. 

Há muitas pessoas feito eu por aí. Algumas não falam porque são traumatizadas. Outras, porque têm vergonha de se expor. E outros motivos. Só que muita gente sofre com isso. São dores na alma, no peito e na geladeira vazia. Na saudade das pessoas queridas, que poderiam ter mais tempo na Terra. 

Eu tenho o mais profundo nojo das pessoas que defendem a ditadura. A elas desejo as piores coisas. Essa não é uma causa de ricos contra pobres, de brancos contra negros, de conservadores contra progressistas, de direita contra esquerda, mas sim a causa dos seres humanos contra monstros que defendiam e defendem - ainda - o nazifascismo, e isso é intolerável. 

Há pouco o Brasil quase passou por mais um golpe. Que as pessoas tomem consciência dos fatos e pensem em suas famílias, em seus filhos. Não é mais possível que em 2024 as pessoas defendam uma aberração como a ditadura. É inaceitável e merece as piores reprimendas. 

Nenhuma criança deveria ter passado pelas coisas horríveis que eu passei, por causa dessa ditadura nojenta. E o pior é que, perto do que muitas sofreram, eu sou até um privilegiado. Não fiquei na primeira fila da sessão do horror. 

A você, que tolera ou defende isso, pense que as pessoas mutiladas, estupradas e covardemente assassinadas poderiam ser suas próximas, ou até da sua família. A ditadura começa eliminando seus alvos prioritários, depois ataca qualquer um. E se você vê algo parecido com a milícia e o tráfico, isso está longe de ser mera coincidência. 

@p.r.andel

Tuesday, March 26, 2024

03:00 AM IN NYC

Não há ninguém no Grant's a essa hora. Nem Grant's há. Não se come mais grandes pratos baratos de comida à noite.

O mesmo vale para o Five Spot. Nem pensar em esperar por Thelonious Monk batendo o pé no chão para marcar grandes temas de jazz. 

Agora é tarde.

JAZZ IS DEAD. 

Os velhos e bons beatniks que iam e vinham pelos bares à noite estão todos mortos, ou tão velhinhos que nem saem mais de casa. 

E se Thelonious não bate o pé, onde procurar os novos gênios do jazz? Gênios, gênios, nunca mais, mas há grandes músicos. É difícil alguém construir coisas para estar na mesma prateleira de Charles Mingus ou Miles Davis. Muito difícil. 

Nem jovens rapazes muito doidos do tipo que curtiam os primórdios do Velvet Underground. Rapazes de preto com sapatos de bico e cara de tédio. Jovens mulheres, lindas de qualquer maneira. O rock underground ainda resiste, algumas bandas que também herdaram o estilo do Joy Division: Interpol, The National e similares. 

Será que alguém ainda curte turmas da juventude? Somos ocupados demais, todos teclam o tempo inteiro em seus delicados smartphones e iPhones. Ou ficamos a escutar música rasa com fones vulgares. 

Todos vão mais cedo para casa agora. Quase todos. Não serei injusto: ainda existe arte e desafio na noite de Nova York, mas o problema é que ninguém mais vai escrever "Walk on the wild side". Até mesmo os escritores são outros: não há Kerouac ou Burroughs, nem a poesia de Ginsberg, nem Gregory Corso. Quem vai descobrir e contar as novas histórias do down by law? 

Tudo bem: vamos tentando de alguma forma. Se o melhor já passou, vamos tentar viver os tempos modernos da melhor forma possível. 

JAZZ IS NOT DEAD. 

Alguma coisa acontece nos corações sedentos quando procuram vestígios dos escombros do Grant's ou do Five Spot. Prosseguimos.

Sunday, March 24, 2024

Os 40 anos de 1984

Quarenta anos por extenso, 40 anos.  

Tudo passa tão rápido, mas ao mesmo tempo 40 anos parece tempo demais. 

É que vivemos ocupados, apressados, temos que lutar pela sobrevivência, nunca temos o tempo devido para viver. O jeito é tentar espiar a paisagem pela janela do trem ou o reflexo da janela no metrô. 

De repente, tô olhando para a televisão e acabou o verão de 2024. Alguma coisa me teletransporta para 1984. São 40 anos. 

Os 40 anos da estreia do Sambódromo maravilhoso no lugar do eterno entra e sai das ferragens de João Mendes na Marquês de Sapucaí.

Lá se vão 40 anos dos Jogos Olímpicos de Los Angeles. Quem se lembra de Mary Lou Retton? E da bela canção tema do evento cantada por Christopher Cross, “A chance to heaven”?

Talvez 40 anos para se pensar no título do grande livro de George Orwell.

Ou quando eu era garoto de Copacabana, ainda ia à praia e gostava dos horários mais desertos possíveis, de preferência no comecinho da manhã. É uma das mais belas paisagens da natureza humana. 

Há 40 anos eu acampava num dos lugares mais lindos do Brasil, o Forte Imbuí. Numa tarde nublada de setembro, naveguei pelo semblante de uma garota linda, com seu olhar perdido vagando pelo Atlântico Sul.

Em 1984 eu também estava num dos meus melhores Réveillons. Coisa de garotos. Eu, Fredão, duas amigas lindas. A gente lanchando no Gordon. Nosso atendente predileto era um jovem negro magrinho. Seu nome era Misaque. Atendia todo mundo bem. Gente boa, carioca.  

Há 40 anos, meu Fluminense pintava e bordava no Maracanã, no Morumbi e em qualquer campo do mundo. Ganhou o campeonato brasileiro, o carioca e passava o trator. Era o Fluzão demolidor rei dos clássicos e dos títulos. Paulo Victor, Aldo, Duílio, Ricardo e Branco; Jandir, Deley e Assis; Romerito, Washington e Tato. E Vica, Leomir, Renê, Paulinho e Parreira, um monte de gente. 

Há 40 anos a gente descobriu um certo Ayrton Senna da Silva, que apareceu para o mundo com sua Toleman deixando todo mundo tonto. 

Ah sim, há 40 anos Mick Jagger estava no Brasil. Começava uma guerra fria dentro dos Rolling Stones que duraria alguns anos, até a volta apoteótica da banda no final dos anos 1980. 

Há 40 anos tinha o Canecão. Grandes shows a preços populares, era fácil para ir e voltar de ônibus. Tudo era mais tranquilo. Agora com os preços explosivos, o jeito é ficar vendo os festivais na televisão. E, claro, a qualidade das bandas caiu muito, mas justiça seja feita para não viver só de saudosismo: achei bem legal o show do Arcade Fire no Lollapalooza. 

Eis os 40 anos das multidões brasileiras nas ruas pedindo a volta à democracia, as Diretas Já. Um sonho que talvez até hoje a gente não tenha vivido direito. Tivemos bons momentos e outros, terríveis.

Senhor, como pode ter tanto tempo assim? Tudo foi outro dia, eu lembro dessas coisas todas com muita facilidade. Como podem ter escorrido 40 anos desse jeito? Bem disse o poeta: o tempo não para. 

Tubarões voadores de Copa

TUBARÕES VOADORES AMEAÇAM COPACABANA

Agência Estado Psicodélico 15/09/1988

Orley Maggalhaenz - da sucursal

RIO - Uma das cenas mais aterrorizantes dos últimos tempos foi testemunhada ontem por moradores de Copacabana. Diversos relatos dão conta de que, por volta das onze da noite, uma esquadrilha de tubarões voadores não apenas sobrevoou a Princesinha do Mar, mas também sentou praça na cavalaria do bairro que nunca dorme. 

O fenômeno tido como extraterrestre foi extremamente rápido, não passando de vinte e cinco minutos, mas suficiente para deixar a população local em pânico. No entanto, ao contrário do que se poderia imaginar, nenhum dos tubarões abocanhou ninguém, embora diversas ocorrências tenham sido registradas.

A peixaria do Posto Seis foi abalroada e teve sua vitrine quebrada, alguns peixes desapareceram. Dois toldos do bar e restaurante Transa, na esquina da rua Bolívar com a avenida Atlântica, foram rasgados. Moradores do famoso edifício Chopin, ao lado do Copacabana Palace, afirmaram que um tubarão lilás passou em voo rasante na altura do quinto andar e parecia dar uma gargalhada. E turistas do luxuoso hotel Le Meridien, na entrada do Leme, desceram imediatamente para a praia com máquinas fotográficas, mas um fenômeno desconhecido impediu os registros, conforme o depoimento da estudante portuguesa Maria Teresa Salgueiro, 20 anos, aos policiais: "Eles eram uns três ou quatro, fizeram piruetas e pareciam até sorrir. Quando preparei a máquina para fotografar e apontei para eles, uma grande nuvem de fumaça vermelha e preta nos sufocou. Caímos na areia e, quando nos levantamos, eles já tinham subido muito. Um era vermelho, o outro amarelo e os outros dois não me lembro".

O caso mais inacreditável foi contado por José Roberto, o Mussum, 25 anos, figura marcante do futebol de praia e das noites de Copacabana. Ele bebia um pacífico chope no restaurante Rondinella, na praia e esquina com Siqueira Campos quando, num súbito, viu uma grande barbatana e não teve como reagir: um tubarão roxo em poucos segundos roubou sua tulipa e evadiu-se em direção ao Atlântico Sul. Disse Mussum: "Aí mané, veio o tubarão cheio de pantominági (sic) e levou meu chope novinho. Safado! Sai dessa maresia, era só o que me faltava.". Também foi deixada uma enorme cartolina, com mais de três metros de comprimento onde se lia "Free Solana Star", nas imediações da trave do Juventus, na areia, em frente à rua Figueiredo Magalhães. 

No entanto, a passagem da esquadrilha de tubarões não causou exclusivamente medo. Na boate Bolero, famoso reduto da boemia copacabanense à beira-mar, Lady K, 23 anos, requisitada garota de programa, quase suspirou pela inusitada esquadrilha marítima: "Um deles era amarelo, tão bonito, parecia que estava com a camisa da Seleção. Passou aqui pertinho mas não entrou. Eu agarrava ele!". Para o jornaleiro local Mahmoud Avahskninkar, 47 anos, há suspeita de acerto de contas: "Cê acha que o verão da lata foi de graça? Os caras mandaram recado que querem a compensação do prejuízo". Houve quem nem ligasse, tal como a senhora Wanda Wildner, 75 anos bem vividos, segundo a própria: "Meu filho, esse bairro é um zoológico. Tem urubu, pavão, veado, piranha, pomba rola, jararaca, tudo na rua, e eu vou me preocupar com tubarão? Me chama quando o elefante e a girafa estiverem no botequim da Prado Júnior, ou na pracinha do Bairro Peixoto". Por fim, o veterano DJ Monsieur Limá, ícone do bairro, vaticinou: "São tubarões malandros, vieram onde tem muita gatinha". 

As ocorrências foram registradas na 12a DP. Na ausência do delegado titular, o experiente detetive Cler Bonelli garantiu a devida averiguação do insólito atentado extra-marinho em Copacabana. 


@pauloandel

Wednesday, March 20, 2024

Sobredeus

Há  anos, muita gente diz que eu carrego Deus comigo mas não nos encontramos. Eu não consigo vê-lo nos cheiros de rua triste e faminta, com gente se decompondo a céu aberto com seus corações nas mãos. Ele não existe. Talvez ele não exista. É um tema de profunda contradição. Justamente por isso, há indícios de Deus na prática humana. Por exemplo, nas artes. Deus não existe, mas quando Michael McDonald canta ele é uma expressão de Deus. O mesmo vale para as canções entoadas por Cartola - Deus não existe mas criou aquilo. Viva a contradição. Ausente, Deus está por todo canto: nos sopros de Pixinguinha, que se consagraram no salão nobre do Fluminense - cujo uniforme todo branco, hoje quase impossível, é também uma representação divina -; nas fotos de Sebastião Salgado, nos pianos de McCoy Tyner e Tom Jobim; na beleza dos sorrisos das atrizes Fernanda Vasconcellos e Nathalia Dill - esta em cartaz na TV atualmente, ajudando o mundo a ficar mais leve - ela me lembra Juliana em algo que não sei dizer, nem cabe agora. Alessandra? Não. Gabriella? Sim. Katia? Também.

Ao mesmo tempo em que descreio de Deus num mundo cheio de ódio, guerras e desilusão, ele se faz contradição e aparece em várias sessões da tarde, como num biscoito de polvilho nas mãos de um garotinho aprendendo a andar em Copacabana, ou de mãe e filha de mãos dadas num trem da Central a caminho do culto que lhes fará bem, distante dos pastores tubarões voadores que saqueiam a alma de pessoas boas e ingênuas. 

Inexistente, Deus insiste em seus indícios. Sem vê-lo, desconfiei muitas vezes dele na praia de Copacabana pela manhãzinha, deserta, ainda segura. E nos sábados à tarde no grupo de escoteiros nos anos 1980, quando éramos pobres e ricos juntos de verdade dividindo comida, canções e abraços nos acampamentos. Também desconfiei de Deus quando passei no vestibular, porque sabia que de certa forma ele garantiria a sobrevida da minha família, o que acabou acontecendo por vários anos, até que me tornei um viajante solitário, mesmo casado. 

Eu procuro e não encontro Deus nas lágrimas diárias dos familiares dos mortos pela violência, essa estupidez que nos corrói. Também não o encontrei no mundo corporativo por onde vivi quase trinta anos, cheio de mesquinharias e maledicências, mas me livrei daquele fel. Hoje sou um homem maduro, falido e infeliz à espera da morte, e tão contraditório quanto Deus, escrevo quase que diariamente, trabalho, produzo coisas que não dão dinheiro mas deixam as pessoas felizes. 

Por muitos anos, entre os 1980 e 1990, eu achei que Deus pudesse estar entre os silêncios e o vento de Arraial do Cabo, ainda com sua entrada a asfaltar, cheio de belezas de areia e mar, com ruas calmas. Não, não encontrei, mas tive momentos felizes por lá e beijos gloriosos. Tive risadas com amigos queridos, hoje desaparecidos pela tonelada de obrigações do dia a dia. 

Os amigos que vão embora são fruto da ausência de Deus, ou suas vindas representam a mão de Deus? Quem sabe dizer com razão absoluta, sem fanatismo? 

Tudo é contradição. Ao mesmo tempo em que estou muito mais próximo do fim do que do começo, sinto que o mesmo fim parece longe porque há muito a ser feito. Acho que dá. Será? Será que vamos conseguir vencer? Deus está num canto da sala cheia de entulho, livros e discos? 

Sinto dores mas tenho certa saúde. Sinto amores inúteis e tudo bem. Sinto que a minha cidade está cada vez mais opressora e excludente, mal o sol tendo raiado - e ainda bem que perderemos 12 graus nos próximos dias, porque ninguém aguenta mais derreter em vão. 

Não são nem cinco e meia mas sinto uma fome dos diabos. Daqui a pouco vou escrever sobre o Fluminense - time para o qual torço contra, segundo os mais desalinhados, porque não acredito que Fernando Diniz chegue à unha de Deus. Eu torço contra o time que me fez escrever 25 livros...

Agora estou um pouco tonto e posso cochilar a qualquer momento. Espero que a Marina esteja vindo bem para o trabalho. Espero que o mundo seja menos opressor para as pessoas, que as crianças não morram em Gaza e que todos os criminosos de guerra sejam punidos. Sonho com um sanduíche em breve. Em ter uma casa, em pagar as dúvidas e ter saúde para escrever mais livros. Tenho o sonho beat de alguns livros atrás, pois. E procuro por Deus em vão porque sei que essa é a única chance de reencontrar meus pais. 

Lá fora o azul do céu está mudando de tonalidade. Nada de novo debaixo do sol. Os primeiros banhistas começam a chegar à orla de Copacabana, imaginários ou não.  

(Livre inspiração sobre "Obrigado, Deus", de Ricardo Soares, originalmente publicado em todoprosa.blogspot.com)

Tuesday, March 12, 2024

No que eu estou pensando?

Todo dia, há anos, o Facebook me faz essa pergunta. Eu penso em muitas coisas, eu penso o tempo todo até me cansar. Boa parte do que eu penso não desperta o interesse de ninguém, ou quase ninguém. Eu fico muito tempo sozinho e praticamente só falo com as pessoas in loco na loja. Hoje não fui, só falei pela internet. Meu pé tava doendo demais, ainda está, então precisei faltar ao trabalho. Meu sócio cobriu. Então fiquei em casa, pensei em muitas coisas e por motivo justo algumas me deixam triste demais. Não é drama, mas tristeza mesmo. Engraçado que quando falo dessas coisas muita gente se irrita. Quando falo que estou triste, quem também está mas não quer admitir às vezes se irrita. A gente vive num país estranho: o egoísta não gosta de se reconhecer nem ser reconhecido como egoísta. Isso vale também para o hipócrita e o escr0t0. Falando o que sente, você fragiliza muita gente. Só um verdadeiro amigo respeita a tua verdade, mas eles são tão poucos, poucos... Enfim, o fato é que se você fala o que realmente está sentindo, muita gente se irrita porque está pior do que você, mas jamais admitirá. Sofrem em silêncio.

Monday, March 11, 2024

Vespertina

Era sexta-feira, quase três da tarde. Entrei no VLT com destino à Praça XV. Perto da estação Sete de Setembro, uma mulher começou a falar bem alto. Disse que achou o fiscal bem bonito. Ela tinha a voz de uma senhora, daquelas que chamamos "de pigarro". E falava alto, ninguém reagia. No ponto final saltamos todos, uns a caminho de Niterói, outros para Paquetá e Ilha. Eu fui para a loteria, apenas para tentar escapar da morte. Em certo momento ficamos bem perto, eu e a senhora, e então me dei conta da avaliação equivocada. Na verdade era uma mulher dez ou vinte anos mais jovem do que eu, mas carregando sob os ombros todo o sofrimento do mundo. Amputada completamente do braço esquerdo, carregava uma garrafinha de cachaça na mão direita e sorria com sua boca desdentada. Ao contrário de todos no VLT, ela não tinha um destino: estava apenas de passagem, vagando pelas vias de dor e indiferença. Cinco ou seis segundos depois, já havia desaparecido no horizonte. Uma jovem mulher preta, amputada, alcoólatra talvez por necessidade, vivendo o auge de sua tragédia em meio à mais completa indiferença, enquanto batalhões de estranhos vêm e vão. Num súbito, me bateu uma reflexão: se dependesse de algumas pessoas que conheço, e que incrivelmente dizem ser minhas amigas, se eu fosse a exata versão daquela mulher em chamas de sofrimento, elas não fariam absolutamente nada. Seguiriam indiferentes para seus rumos. São daquelas que não querem se envolver, que se despedem de gente sofrendo dizendo "fique bem" ou "se cuida", expressões clássicas da amizade sob distância regulamentar. Escrotas, enfim. Fui para a loteria tentar escapar da morte e salvar alguns colegas. Não consegui e morri. Como os problemas não param, hoje é dia de tentar a ressurreição antes que todo mundo acorde. É madrugada de segunda-feira. Vem aí uma semana de lutas. O Fluminense perdeu. Veremos novas famílias chorando pelos corpos de seus entes queridos no IML. Garotos esfomeados com suas caixinhas de Mentos tentando vendê-las para transeuntes do Centro. A concentração de renda será cada vez pior. Enquanto isso, aquela jovem mulher negra, curtida pela dor, amputada e sem casa, continuará a vagar sem rumo, às vezes gritando no VLT para que ninguém ouça, fazendo de sua vida trágica uma pequena expressão artística. 

@p.r. andel

Tuesday, March 05, 2024

S2C

Estamos em 2034. Scarlett Siqueira Campos é uma travesti cibernética que passa dias e noites fazendo antropologia de boteco pelas ruas de Copacabana. A Inteligência Artificial abre caminho para novas interações e interpretações dentro do bairro que nunca dorme. 

Pesquisando em antigas casas de saliência de Copacabana, Scarlett tenta mapear sua árvore genealógica mutante, buscando compreender sua criação, como foi concebida e se carrega vestígios humanos alem de sua aparência física. 

Bela, ambígua, multissex e misteriosa, Scarlett transita nas altas rodas de Copacabana, nas baixas, no underground e na segurança. Habitué nas delegacias do bairro, sempre alerta para todas as possibilidades, ela tem muitos amigos nas instituições de Copa. Uma de suas fieira é Lady Miss Kler, uma sagaz policial trans aposentada que agora mora no Riachuelo, mas está sempre presente nos babados de Copacabana, gozando firme seus polpudos proventos previdenciários e outras rendas de negocinhos alternativos.

As águas de março vão trazer novos paradigmas socioculturais para os embates cotidianos do bairro. Scarlett tem a missão de mapear todas as intervenções possíveis na balzaquiana Princesinha do Mar, emitindo relatórios transatlânticos e transcendentais,  encaminhando-os para as autoridades competentes de ocasião. 

@p.r. andel

Lancheira

À época eu não tinha a menor ideia, mas uma das melhores coisas de todos os tempos era pegar a malinha com olho de gato, a lancheira e ir para a escola. 

Infelizmente, ainda é uma experiência pouco comum para a criançada brasileira. Está tudo errado e não terei tempo de ver a correção. 

Lembro perfeitamente da alegria que eu sentia na hora do lanche. Um sanduíche qualquer, um refresco e tudo bem. 

O grande problema era tirar notas altas. Só depois a gente entende o que é a vida.

Monday, March 04, 2024

Bichos

Se eu pudesse voltar no tempo, trabalharia com bichos. Não sei se toparia vê-los sofrer, mas cada vez mais o mundo só faz sentido por causa de crianças e bichos.

Durante certo tempo na infância eu tinha medo de cachorro, o bicho oficial de Copacabana. Eu era pequenininho, estava na praia, um cachorrão grandão veio e me derrubou, pulou em cima de mim. Ele era grandão e fiquei com medo. Isso durou até a adolescência e passou.  Bem antes disso, tinha a Diana, cachorrinha pequinesa da minha mãe que ela deu para uma amiga quando nasci. Toda vez que visitávamos a amiga, a Diana vinha correndo e não saía do pé da minha mãe. Que saudade. 

Tive um amigo de escola que há muito não vejo. Ele tinha vários bichos em casa: passarinho, papagaio, cachorro, gato e jabuti. Ri muito no dia em que o papagaio estava tomando banho de gotinha no tanque de roupas. 

Quando fui escoteiro (há quem diga que ninguém deixa de ser), me deparei com vários bichos. A vaca era sempre a mais legal, às vezes micos, às vezes lagartos ou uma cobra sinistra. A vaca fica na dela, vai lá, muge, volta, faz seu rango natural e anda lentamente. Enfim, era uma vida maravilhosa de garoto, natureza, silêncios, paz. Nunca mais acampei, mas lembro como se fosse ontem. 

Meu ex-vizinho tinha um jabuti e um cachorrão bem grandão que gostava de mim. O jabuti às vezes andava no corredor, era um barato. O cachorrão já latia quando o elevador estava no sétimo andar: ele me reconhecia de longe. 

Outro dia fomos em Paquetá, na Casa de José Bonifácio. Tinha outro jabuti, caminhando numa boa, rangando folhas do chão, arrancando com força a cada bocada. Uma alegria. 

Quando minha mãe deu a Diana, tempos depois morreu um papagaio lá em casa: a funcionária o detestava e o deixou no sol. O coitado morreu estorricado. Minha mãe chorou muito e nunca mais quis ter um bicho de estimação para não sofrer. Tempos antes de sua morte, falávamos de ter um passarinho, mas era muito cruel tê-lo numa gaiola. Ela foi embora e fiquei só para sempre. Aqui em casa é tudo bagunçado, não dá pra ter um cachorro ou um gato, e eu não aguento mais perder ninguém. 

Os cachorros da Kátia, o Antônio e o Cesare, eram sensacionais. Gostavam muito de mim. Convivemos bem entre 2007 e 2010. 

Sendo prático, só preciso do dinheiro que me permita sobreviver nessa terra injusta até a hora da partida. Tirando o aluguel, minha vida é muito barata, não tenho bens, não tenho nada. Mas eu gostaria de ser rico se fosse para também ajudar muita gente, planejar algo. E para ter uma fazenda bem grande, onde pudesse ter meu elefante e meu hipopótamo. Acho os dois muito legais. Gosto de ver no programa de TV a solidariedade dos elefantes. E acho muito maneiro quando limpam a orelha deles com um super cotonete de algodão. Peixe também é muito legal. 

Sei lá, trabalhar num pet shop, ter sido veterinário ou feito Zootecnia. Ou até levar os bichos para dar uma volta. Gosto deles. Gosto muito. Até a aranha do banheiro eu evito incomodar quando ela desce pela teia no frio azulejo branco. E a formiga? Pequenininha da Silva. Ser formiga é muito difícil: você pode ser assassinado o tempo inteiro por qualquer coisa. 

Queria poder cuidar dos bichos. 

Eu seria feliz.

(originalmente publicado em setembro de 2019)

Saudades da graça

Lá pelos tempos de oitenta e nove, coisa de uns dezessete anos, eu era apenas um rapaz latino-americano, sem parentes importantes e nativo da Nova York brasileira, Copacabana. Uma década antes, eu gargalhava sozinho ao ler os textos de Ivan Lessa no então vivo Pasquim, e sentia-me chateado porque nenhum outro amigo sabia sequer do que eu ria com o jornal de “oposição”, assim falavam. Adorava os palavrões, os insultos aos leitores, tudo coisas que eu não tinha a plena noção, assim como a de que Ivan é um gênio e que, se um dia eu aprender a escrever direito, devo tudo a ele, velho Ivan.


Volto aos oitenta, quase noventa. Uma dureza danada, começo de faculdade, pai contra, dificuldades. Houve um dia em que paralisaram a faculdade, voltei para casa, perto de nove da manhã, resolvi caminhar pela beira do mar em dia nublado. Desci a Figueiredo velha de guerra, rumo ao Sumol, esquina com Barata Ribeiro, Varese em frente, lanchódromo do bairro ao lado de próceres como o Gordon e o popular Cervantes. Provavelmente Ferôncio e Luiz estariam jogando bola, Rubinho ao menos. Antes de pedir meu tradicional eggcheeseburger, vi um carro parado, não sei se uma Brasília, daquelas que os Mamonas iriam imortalizar anos depois. Fato era o de ser um carro da antiga. Quando olho para o motorista, me vem uma sonora gargalhada, uma seqüência delas – o interlocutor, melhor, interobservador retrucou-me com risos idem, e não trocamos uma palavra, até que o carro partiu e eu cheguei ao balcão para pedir o sanduíche.

Era Bussunda.

Não se tratava de uma celebridade televisiva, mas já tinha seu fan club. Ano antes, tinham feito um show histórico no Circo Voador, em campanha para o macaco Tião, hóspede do zoológico e candidato informal a prefeito que conseguiu medalha de prata no pleito – Xuru foi ao show e fez campanha para o Macaco Tião; adorava contar que Bussunda tinha sido jurado em um concurso do qual ele, Xuru, tinha participando como...vocalista da Troncomóvel Band. Redator de um programa de tevê que tinha acabado de alcançar índices alarmantes de audiência, a TV Pirata. Engraçadíssimo, pois. Escrevia também numa revista sensacional, a Casseta Popular, que fez – merecidamente - gato e sapato de Collor. Vendiam camisetas com deboche e cartuns marcantes, frases, comprei duas para Alessandra e uma para Klein.

Tempos depois, fizeram outro show hilário no Teatro Ipanema, todos vestidos de Leopardos, Luizinho me chamou para ir. Bussunda, em certo momento, causava alvoroço de risos na platéia – imitava simplesmente Deus numa parte da peça, caminhando por entre os expectadores, com seu sorriso ímpar, sem dizer uma só palavra.

Universidade do Estado, 1991. Show de Oswaldo Montenegro para a TVE, beta-boca com um aluno, OM irou-se, referência ao fato de Bussunda ter comentado no Salão Carioca de Humor, na Santa Úrsula, que o “Museu do Babaca” ia ser inaugurado no Casseta Shopping Show, simpático bar da rua Paulino Fernandes...com um móbile em tamanho natural do trovador citado, na porta.

Com o passar dos tempos, a turba toda se reuniu, a Casseta Popular, o Planeta Diário – maravilhoso, com suas manchetes surreais. Livros, discos, programa em horário nobre, virou indústria das boas. Fiquei sabendo que alguns dos membros da turma foram estagiários do Pasquim – e conseqüentemente, do Ivan, que muito inspira muito do que fizeram de melhor.

Os veteranos da Uerj que divertiram-se a valer nos folguedos e eventos promovidos pelo alto clero estudantil do Instituto de Matemática deve, em algum momento, ter percebido a influência Bussundiana no grupo. Tivemos um grupo de humoristas famoso por lá, hoje finado, chamado Cecrime e que nada tinha a ver com crime, só com gargalhadas.

Não gostei quando Bussunda resolveu distratar o Fluminense em suas crônicas esportivas – ressalte-se, eu e uns dois milhões de torcedores que muito o xingaram. Pediu desculpas: era craque, percebeu que o humor tinha extrapolado a conta. A vida seguiu, sem mágoas. Bem disse Rinus Michels, também desaparecido, que era e é, sempre, somente mais um jogo de futebol. Enquanto isso, os Cassetas fizeram as turbas rirem e rirem.

Vem uma bobagem e splaft! Tira o Bussunda do caminho. Muito antes dos acréscimos do árbitro. Errradamente. Esse negócio do grande palhaço, do humorista, morrer antes da hora, dá um gosto de cabo de guarda-chuva danado. Parece que a festa não vai ter vela soprada porque o aniversariante não veio.

Eu, sabe-se lá porque, recentemente voltei a ver os Cassetas antes do outro programa de terça, que considero muito bom, coisa deste ano. Dia desses, vi um quadro divertido e fiquei recordando, meus flashbacks imaginários na cachola, dos tempos do Casseta Shopping Show. Tempos do Collor, quando achávamos que a coisa ia dar certo, pobres de nós....Tempos da faculdade, que voam ligeiros e não deixam rastros. Tempos da Alessandra e da Klein.

Luizinho foi embora. Xuru, idem. Cecrime, ausente. Bussunda também.

O Sumol já não é mais o mesmo. Não posso ir mais à praia de manhã. Não tem mais nenhum motorista gargalhando na esquina.

Tenho saudades da graça.

(originalmente publicado em julho de 2006)

Sunday, March 03, 2024

3 x 4, LAPA, 5AM

(Até quando esperar?)

Estamos nos últimos minutos do primeiro sábado de março, devidamente esticado para a alvorada de domingo. 

Quatro quintos da multidão já deram o fora, mas os 20% restantes querem mais uma dose, um tapa, um alívio da alma. 

Duas travestis lancham cachorro quente numa barraca bem aos pés dos Arcos da Lapa. 

Jovens multissex dividem mesas nos bares ainda abertos na primeira quadra da Mem de Sá.

Apesar do cuidado sempre necessário, agora há pouquíssimos meliantes na região. É que eles também se cansam e dormem. Alguns fizeram suas férias com o produto predileto: smartphones.

Quase na esquina com a Gomes Freire, um veterano traficante sempre alerta espera pelos últimos clientes, e também tem poucos narcóticos. Com o início do mês, a clientela chegou junto. 

Carros particulares e táxis carregam os lapeiros para seus destinos. A exceção fica por conta da população em situação de rua: estão entregues ao deus dará de sempre. Quase ninguém liga. 

Um transeunte perto do Nova Capela espia suas mensagens de WhatsApp e percebe que só recebeu bobagens, então estica o braço direito e pede um carro amarelinho, louco para se mandar. 

[Onde estão as lindas piranhas que nos fazem sonhar? 

Um garotinho negro, com suas roupas humildes e caixa de engraxate, conta os trocados que levará para casa e então ajudar nas despesas da mãe. Um gesto de honradez vindo de quem deveria ter dias de liberdade e alegria, mas que só tem uma luta gigantesca. 

Na próxima quadra fica o aterrorizante esqueleto do Instituto Médico-Legal. Há um clima sombrio, um cheiro de morte. O poder público não se mexe para mudar o cenário. É sempre assim. Vamos às ruas buscar drogas legais e ilegais para aliviar nosso dia a dia. 

Perto da Cruz Vermelha, uma senhorinha passa com seu cachorro, tentando não atrapalhar o sono desmaiado e sofrido das calçadas.

Agora é domingo. Poucos acordam para as compras de padaria, muitos vão para o sono da madrugada, outros permanecem insones de tanto stress. 

Vai ter clássico no Maracanã, mas virou amistoso para cumprimento de tabela. 

Um amigo será enterrado. 

@p. r. andel

Sunday, February 25, 2024

Lindoya

Nesta madrugada, descobri que a água mineral Lindoya passou a ser engarrafada em 1972. Curioso, porque eu me lembro muitas vezes de meu pai pedi-la em botequins quando parávamos para nos refrescar, justamente em volta de 1973, 74, então ela era uma novidade e eu não sabia. Isso era antes dele ter adoecido com álcool.

Gostei do nome desde que o ouvi pela primeira vez. 

No botequim, a garrafa era de vidro. Bebíamos em copos americanos. 

Naquela época havia poucas lanchonetes. Você ainda encontrava alguns armazéns e também lojas com animais prontos para abate. Coitados. E não há hipocrisia alguma nisso. Não é porque o peixe e o frango são gostosos que vou deixar de ter pena deles. Voltando, também tinha padarias e vários botequins, botecos estilo pé sujo. Hoje eles são cada vez mais raros, substituídos pelos bares gentrificados. 

Em Copacabana eu lanchava no Rick da Figueiredo Magalhães, cujo proprietário era Ricardo Amaral, o rei da noite. O misto quente deles era delicioso, crocante como deve ser. Também lanchava misto quente no Boni's, que continua intocado na esquina de Siqueira Campos com Avenida Copacabana. 

O que fez meu pai sucumbir ao alcoolismo? Fácil: derrocada financeira, desgosto pelo irmão exilado do Brasil, tristeza e problemas psicológicos vindos ainda da infância como órfão de pai e mãe. Agora é fácil entender isso, mas naquela época eu só sofria e ponto. Ainda lembro dele calmo e silencioso com uma garrafa de Lindoya em cima do balcão. Eu bebia também, além de uma Coca Cola que hoje chamam de KS. 

Tudo isso me veio à tona porque acabei de tomar um gole de água e descobri que a garrafa de casa era Lindoya. Cada dia tem uma marca na padaria. Agora as garrafas são recicláveis e quase estouram à toa, de tão fininhas. E fico assustado porque qualquer lembrança já tem quarenta ou cinquenta anos. Tudo bem, a vida é breve e precisamos aceitar o processo.

Oh, Susanna!

Um dos grandes baratos na internet é justamente você conseguir rever pessoas e personalidades que estão sumidas da mídia há certo tempo, gente que você não viu nem ouviu mais.

Por exemplo, um dia desses eu estava passeando pelo Instagram quando me deparei com ninguém menos do que a Susanna Hoffs. Belíssima, sessentona, cantando e postando fotos de seu cotidiano, respondendo aos fãs com toda educação e simpatia. Naturalmente alguém vai perguntar quem é Susanna Hoffs, por motivo justo. Os olhos e ouvidos mais atentos dos anos 1980 vão responder: era a cantora das Bangles, banda de pop que nem era lá essas coisas todas, mas que fez um sucesso enorme para canção “Walk like an egyptian”. E, claro, o grupo tinha quatro integrantes gatas que deixavam os adolescentes em puro êxtase - e Susanna era a referência.

Outro caso: no Facebook, você pode seguir a página de Ferrugem, que não é o sambista tricolor, mas sim o mitológico ator mirim que dominou a TV brasileira nos anos 1970 e 1980. Ferrugem ainda continua em plena atividade em rádio, podcasts etc, embora não esteja na TV aberta com regularidade. 

Enquanto isso, a própria TV tem usado o expediente de resgatar artistas populares que, de alguma forma, já não têm a mesma visibilidade de outrora. É o caso de Serginho Groisman. O apresentador tem investido em programas temáticos nas noites de sábado. A turma da Jovem Guarda, os veteranos do sertanejo, o pessoal da música romântica em inglês. Sábado passado mesmo rolou de Perla a Ednardo, passando por Márcio Greyck, Tony Tornado e Adriana. Silvio Brito incendiou a galera ao vivo e o próprio Tony, aos inacreditáveis 94 anos, fez uma apresentação emocionante de "BR-3”, o clássico que o consagrou instantaneamente no V Festival Internacional da Canção de 1970. 

Quando a gente revê essa turma viva e ativa, um pensamento é inevitável: temos um exército de grandes artistas que não somente precisam ser redescobertos, como também têm pressa porque a ampulheta tem cada vez menos areia desabando. Já escrevi o mesmo aqui sobre o rock internacional. São muitos os septuagenários e octogenários ainda em atividade. Ao mesmo tempo que é maravilhoso ter tanta gente boa, todos sabemos que daqui a algum tempo vai ter uma grande revoada, por que o tempo não para e é inevitável. 

Outra coisa também faz pensar: continuidade. Quem está fazendo a nova grande música popular brasileira? Deve ter muita gente boa nos porões da internet que nunca vimos ou ouvimos falar. Os tempos mudaram, você já não tem mais os grandes festivais, nem a grande consagração popular, o rádio é diferente. Assim, é certo que a nova música brasileira não terá ídolos do mesmo tamanho que ainda temos. Lá fora basta dizer que, nos grandes festivais de rock pelo mundo, quem ainda dá as cartas são as bandas veteranas, chamadas de “rock clássico”, com seus integrantes geralmente acima dos 70 anos. 

Tudo bem. Sem lamentações. Vamos aproveitar. Que seja eterno enquanto dure. Susanna Hoffs ainda é muito gata.